A linguagem com as mãos

As crônicas de Nilson Lattari são publicadas semanalmente aqui na Wave Online

Foram as mãos sempre inquietas, eloquentes, o motivo do meu fascínio. Fã incontestável do cinema, observei no enquadramento dos filmes a posição da câmera sempre postada da cintura para cima, sempre dando o espaço e a conveniência de falar com as mãos. É um povo que fala com as mãos. E isso tudo começou quando a família se reunia aos domingos e não poderia ser diferente quando eu chegava, ainda pequeno, e passando pelo portão da casa da nonna, mãos vinham me receber. Ainda nos braços da minha mãe, via chegar aquele povo risonho, de perfil arredondado, vermelho, as mulheres a se esbofetearem alegremente, batendo as mãos, batendo na lateral da cintura. E ali mesmo meu nome mudava: “Vieni qua, ragazzo!”; “Ma che bel bambino!”.

Sempre gostei de ser chamado assim. Adorava esse nome: Bambino. Imaginava que meu nome completo poderia ser Giacomo Santoro Bambino. Por que não? Eu, o primogênito, filho do primogênito da família Santoro, o preferido da nonna, que tinha no meu pai o seu preferido, herdeiro do relógio Omega que meu pai trazia preso na algibeira, e que ao chegar a casa suas mãos o retirava para colocá-lo em minhas mãos, como um objeto de desejo, cheio de histórias, trazido no navio de imigrantes pelo bisnonno.

Os tios, as tias, o nonno, já aboletados na mesa posta no quintal, enchiam os copos com a tintura escura do bom vinho, que ajudava a descer a macarronada disposta com elegância glutona sobre a mesa.

Praticamente, alguns minutos, talvez horas, o chão não via meus pés. Andava de colo em colo, servindo de motivo de alegria, brigas fingidas, falsos ciúmes, e meu pai, legítimo descendente daqueles avermelhados, possuidores de falatório interminável, de conversas atravessadas, se divertia com o meu sorriso e o dedo apontado para a bainha da camiseta da anziata zia, a tia mais velha, depositada e se ensopando de molho de tomate, as mãos estendidas com o prato na tentativa vã de ser a primeira a me servir.

Sempre as mãos me dirigindo calorosamente um beijo, um afago, um apertão cheio de desejos na minha bochecha, dando início a um acalorado debate quando meus olhos se enchiam de lágrimas pela dor. O que fazia a culpada se sentir humilhada e de repente esconder as mãos criminosas nos bolsos generosos da saia, de onde saíam, magicamente, alguns doces escondidos só para mim.

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Minha mãe, sua tez morena, completamente diferente daqueles seres, se encolhia no canto e era logo retirada por diversas mãos para seu lugar à mesa. Meu nonno, na tentativa de provocar ciúmes em meu pai, enchia de afagos, com a sua mão gorda e enorme, as mãos da minha mãe. Mãos poderosas que me levantavam assustadoramente sobre as guloseimas, os vinhos, os pratos, de onde com um riso nervoso eu sobrevoava as vozes, risos e aquela quantidade de mãos prontas para me aparar, caso caísse.

A nonna das nonnas, que a todo instante era repreendida pela minha nonna, sua filha, porque teimava falar na língua da terra e não aquela da terra que os acolheu, se contentava em ficar explicando qualquer coisa para minha mãe na sua língua enrolada, e minha mãe ficava ali tentando entendê-la.

Quando voltávamos, ela comentava com meu pai que entendera mais alguma coisa. Meu pai fazia cara de cético. Ela, triunfante, comemorava que com as suas aulas de francês conseguira identificar o mangiare da anziani nonna com o manger de suas aulas. E brincava que a todo tempo aquelas mãos estavam sempre tão perto da comida! Eu imaginava que ninguém poderia comer tanto e falar ao mesmo tempo, se não tivesse a ajuda das mãos.

Mas tudo chegou ao fim, a casa, com a plantação de abiu, as mangueiras, a folha de zinco com as roupas a secar no sol e o chiqueiro do porco sempre limpinho, foi vendida para a construção de um edifício. O construtor, depois de várias tentativas em realizar o negócio, resolveu pedir a minha ajuda. Sugeri que homenageasse um dos moradores, membros da família Santoro. Diante daquela proposta, os rostos se calaram, as lembranças assumiram o lugar do vozerio e as mãos ainda permaneceram falantes e evoluindo perdidas no ar, como a procurar na história, nos pensamentos, o nome que mais conviesse. E não mais que subitamente as palavras vieram nas bocas e nas mãos na tentativa do convencimento, e com elas as lágrimas.

Não chegaram a nenhum acordo. Eu ouvi com delícias aquela última briga. Desistiram dos nomes e ficou acordado, apesar de nenhum deles ser provenienti da lì, que se chamaria Torre de Pisa (o que quase desandou quando o construtor grafou com dois Zs). Mas eu pedi que duas mãos fossem colocadas embaixo do nome. Eles não entenderam o porquê, mas acharam bonito. Eu achei, belíssimo! A suspender no ar um beijo ajuntado pelas pontas das minhas mãos.

**Crônica primeira colocada no Prêmio UFF 2011, em comemoração ao ano Brasil-Itália

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