Tudo começa com uma palavra em inglês em meio ao vocabulário da criança. O pai ou a mãe brasileiros escutam orgulhosos, afinal, muitos deles tiveram dificuldade em desenvolver o novo idioma após a mudança para o Canadá. Com o tempo, as frases tornam-se cada vez mais misturadas até que o português sai de cena para que a língua inglesa domine de vez a comunicação. Nesse momento bate o medo: será que esse é um caminho sem volta?

Segundo o estudo The results of the national heritage language survey: Implications for teaching, curriculum design, and professional development (Carreira, M & Kagan, O), após iniciar a imersão escolar na língua majoritária no novo país, existe uma tendência à diminuição do uso da língua herança.
Francine Martins, sentiu isso de perto. O filho Nicolas, de 9 anos, nasceu em Vancouver (BC), mas com pai e mãe brasileiros, ainda falava o português quando pequeno. Hoje, ele já não usa mais o idioma de herança. “Em 2017, nos mudamos para Prince George, na Colúmbia Britânica, onde eu não conhecia outros brasileiros. Também me separei e hoje tanto eu quanto o pai do Nico nos relacionamos com canadenses. Com isso, o inglês ficou ainda mais presente”, conta ela.
Antes da mudança, em Vancouver, o garoto frequentava a Oficina Curumim, entidade sem fins lucrativos que estimula o uso da língua portuguesa e valoriza o contato com a cultura brasileira. “Uma amiga me contou sobre o projeto. Nico participava de atividades aos domingos envolvendo brincadeiras, histórias, músicas, artes e jogos com elementos das tradições de nosso país. Lá, ele também mantinha contato com outras crianças de famílias do Brasil”, conta ela.
A Oficina Curumim surgiu de pais brasileiros que buscavam a valorização da cultura e da língua natais
Foi só no fim de 2022 que Francine conseguiu se conectar com a comunidade brasileira na nova cidade, Prince George. Para ajudar o filho, ela não pensou duas vezes em abordar um pai que falava português com outra criança na escola em que Nicolas estuda. Ao conversarem, soube que havia um número crescente de brasileiros em Prince George e passou a fazer parte do grupo, encontrando-os sempre que possível. “Queria muito que Nico tivesse outras crianças para falar em português, porque sei que ele tenta se comunicar quando está sozinho com falantes da língua”, diz Francine.
A história de Francine se repete entre os brasileiros que vivem em outros países. A própria Oficina Curumim surgiu, em 2012, quando algumas famílias se reuniram com o intuito de fazer atividades educativas em português com seus filhos. Hoje, dez anos após a sua fundação, ela atende a mais de cem crianças de 6 meses a 12 anos. Os encontros ocorrem uma vez por semana e os grupos são separados em três turmas, de acordo com a faixa-etária. A equipe pedagógica é formada por sete professoras e 11 assistentes voluntários de sala. Os custos são pagos com mensalidades dos participantes.
Simone Quessada de Faria Santos é a coordenadora pedagógica da iniciativa desde o começo, quando veio ao Canadá com a família. Pedagoga e psicopedagoga com formação em Português Língua de Herança e Bilinguismo, ela conta que a Oficina proporciona o vínculo das crianças com “nossa cultura, nossas raízes e nossa ancestralidade”. “A importância dada a quem nos busca está em preservar a sua língua materna e suas origens e se orgulhar da sua brasilidade, além trazer um senso de comunidade ao cultivar laços com outros brasileiros”, afirma.
É possível identificar propostas semelhantes a Oficina Curumin em diferentes províncias do Canadá, como o Português Lúdico, em Toronto (ON), e o Projeto Lápis de Cor, em Edmonton (AL). Também há professores que trabalham com aulas particulares presenciais e virtuais, como é o caso da pedagoga e psicopedagoga Marina Tiso, que mora em Vancouver.
Marina diz que o envolvimento da família é essencial na manutenção da língua

Marina dá aulas de português como língua materna ou de herança para crianças de diversos países
A professora Marina se mudou com a família para o Canadá em 2018 e atualmente tem alunos em diversos países. Além das aulas particulares, ela desenvolveu projetos para conectá-los por meio da língua. “Uma iniciativa que proponho é o Clube do Livro, em que nos reunimos virtualmente uma vez por semana para lermos juntos e fazermos atividades relacionadas a essa leitura. Escolho exemplares de autores e ilustradores brasileiros, para que os elementos culturais estejam presentes”.
Das famílias que procuram Marina, tem um pouco de tudo: desde crianças que falam, mas acham que não sabem ler em português, até os que já não se comunicam na língua de herança. A pedagoga diz que a alfabetização é um processo único, então quem sabe ler e escrever em inglês vai conseguir fazer o mesmo em português, apenas adequando questões gramaticais. Para isso, porém, ela ressalta ser importante ter vocabulário e repertório no idioma. “Uma aluna disse no primeiro dia que não sabia ler em português e na quinta aula já afirmou preferir ler os livros brasileiros”, exemplifica.
As aulas de Marina são adaptadas às demandas de cada criança, sejam elas relacionadas à oralidade, à escrita ou à leitura. Mas com todas as famílias ela enfatiza a importância da continuidade do trabalho em casa. “Digo que eu dou apenas o empurrão, mas a família tem que estar determinada a fazer sua parte de forma sistematizada. Não basta apenas falar em português com as crianças”.
Para Silvia, o português é a língua pela qual ela expressa as emoções
Os motivos para muitos buscarem formas de incentivar a preservação do português com os filhos incluem a manutenção dos laços com familiares no Brasil, a valorização do bilinguismo como um diferencial para o desenvolvimento da criança e para oportunidades profissionais futuras, e a importância dada à cultura brasileira.
Silvia Macedo fez parte da diretoria da Oficina Curumim entre os anos de 2015 e 2017 e foi quem a apresentou a Francine. Com dois filhos, Liam e Klaus, de 13 e 10 anos respectivamente, ela acrescenta um importante aspecto a essa lista: “O português é minha língua emocional. Eu não conseguiria expressar minhas emoções com meus filhos em inglês da forma que eu expresso em português, e nem gostaria disso. Eu quero que eles tenham conhecimento da minha língua o suficiente para entender essas nuances, que são as emoções passadas pelas palavras”.
Marina compartilha do pensamento de Silvia sobre o caráter emocional dessa aprendizagem. “Não é apenas uma questão de tradução. Trata-se de entender a própria hereditariedade. Certa vez um grupo de alunos me definiu o português como sendo o idioma ‘da bronca’. Na verdade, ele deveria ser a língua do afeto, que expressa nossa cultura, nossas particularidades e emoções. Assim, é importante incluí-lo na rotina em atividades que evoquem isso, como contar histórias da infância, em um momento de leitura carinhoso e assim por diante”, afirma a professora.
Graziela fez questão de garantir uma vaga para a sua filha em um daycare administrado por outra brasileira

Com duas filhas – Luiza, de 11 anos, e Alice, com 2 anos – Graziela e o marido Thiago se mudaram para Prince George, em 2022. Ela conta que, antes de embarcar, olhou muitos blogs, sites e perfis de redes sociais de outros brasileiros no Canadá. “Nessas buscas eu encontrei a Adelaine, brasileira que estava para abrir um daycare. Achei perfeito para nós, pois eu queria que a Alice se sentisse compreendida e que a adaptação, com a imersão na nova língua, não fosse traumática”, conta. Em seu daycare, Adelaine Gazzano atende Alice e uma criança canadense, além da própria filha, Rivkah, de 2 anos. “Quando a gente se falou pelas redes sociais, dei a opção para a Graziela de mesclar o inglês e o português na rotina. Por exemplo, quando trabalhamos as cores com as crianças, fazemos atividades envolvendo os dois idiomas. Tenho livros disponíveis também nas duas línguas para leitura com elas”, explica.
Luiza, a filha mais velha de Graziela, frequenta o sexto ano da escola pública. “Quando chegamos, ela falava muito pouco inglês e também morria de vergonha. Então, em casa tentamos preservar o português, para que as duas sempre se sintam à vontade em se expressar conosco”, conta.
Dentre famílias e especialistas envolvidos no desenvolvimento e na manutenção do português como língua materna ou de herança, todos ressaltam que o aprendizado vai além do idioma, tendo a construção da identidade como elemento central. “Atuamos para que esse aprendizado ocorra de forma a proporcionar uma memória afetiva e positiva em relação ao português, além de trazer a noção de pertencimento às origens”, diz Simone. “Quero que minhas filhas saibam da nossa história, do nosso povo, da nossa cultura e das nossas raízes. Afinal, isso é parte do que elas são como brasileiras”, finaliza Graziela.
Dicas de como ajudar os filhos a desenvolverem o português em casa
- Estar comprometido com a tarefa. A família tem de tomar a decisão de agir ativamente para praticar o idioma, com rotinas estabelecidas e atividades intencionais;
- Ler livros em português com as crianças. De preferência, ter um acervo em casa;
- Ter rotinas combinadas de inclusão do português, como: fazer atividades de escrita em português – por exemplo, elaborar cartas para enviar para familiares no Brasil –, ler sempre antes de dormir um livro ou gibi brasileiros, etc.;
- Em caso de pais brasileiros, falar sempre português em casa;
- Trazer a língua por meio de um universo afetivo. Isso inclui resgatar histórias da infância no Brasil, elementos peculiares da nossa cultura – como o folclore –, ensinar brincadeiras brasileiras e colocar músicas na língua e cantar junto;
- Demonstrar carinho e orgulho pela língua materna. Isso desperta na criança a vontade de desenvolver o português;
- Conhecer o material elaborado com o apoio do Consulado-geral do Brasil em Miami, que trata de como manter e desenvolver o português como língua de herança. Também, traz uma lista de mitos relacionados ao bilinguismo e sugestões para quem mora fora do Brasil.