Thiago de Mello, o poeta da esperança

“Como quem reparte pão, como quem reparte estrelas, como quem reparte flores, eu reparto meu canto de amor. Com uma estrofe apenas, eu me despeço - para permanecer com vocês. Me despeço para permanecer”.

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Foto do poeta Thiago de Mello, já perto de seus 95 anos, quando falaceu. O tom branco predomina na imagem, reforçando a cabeleira farta e também branca. Um cachecol azul bem claro reforça uma sensação de paz, presente também no largo sorriso deste grande poeta.
Thiago de Mello. (Foto: arquivo pessoal)

Na madrugada de 14 de janeiro, o poeta Thiago de Mello partiu de Manaus e de nossas vidas. Aos 95 anos, foi-se o poeta mas quedou seu legado. Poucos intelectuais brasileiros souberam transmitir em prosa e verso a indignação de um povo.

Em 1964, logo após o golpe militar, Thiago de Melo renunciou ao posto de adido cultural no Chile e, antes mesmo de voltar ao Rio de Janeiro, escreveu o seu poema mais conhecido: Os Estatutos do Homem. Em seu artigo final, o poeta decreta: “Fica proibido o uso da palavra liberdade / a qual será suprimida dos dicionários / e do pântano enganoso das bocas. / A partir deste instante / a liberdade será algo vivo e transparente / como um fogo ou um rio / e a sua morada será sempre o coração do homem”.

No ano seguinte, o poeta publicou “Madrugada Camponesa” e, nele, um dos versos mais significativo contra a ditadura militar: “Faz escuro, mas eu canto/ Porque a manhã vai chegar”. Não por acaso, o verso foi escolhido como tema da Bienal de São Paulo de 2021. Em 1966, veio a público um poema – Canção do Amor Armado – que provocou a ira dos generais e obrigou Thiago a pedir asilo político. Ele esteve exilado na Argentina, Chile, Alemanha e, por último, em Portugal.

Entre aqueles que sobreviveram ao exílio durante a terrível noite da ditadura militar de 1964, Thiago de Mello nunca deixou de cultivar e cantar a esperança, o amor e a alegria de viver. Em 1978, retorna ao pedaço do Brasil que ele tanto amou, a floresta amazônica. Na pequena cidade de Barreirinhas, onde nasceu, viveu o poeta até seus últimos dias.

Thiago mereceu do grande poeta chileno Pablo Neruda, de quem foi amigo e tradutor, uma carinhosa despedida:

“Te irás, hermano, com la que elegistes.
Tendrás razón, pero estaremos tristes,
Que hará Santiago sin Thiago de Chile”.

Com 20 livros publicados, sua obra já foi publicada em mais de 30 idiomas. Em 1986, o maestro Cláudio Santoro compôs uma peça sinfônica baseada nos poemas do livro Faz Escuro Mas Eu Canto. A peça foi executada na abertura da Assembleia Nacional Constituinte, realizada na Praça dos Três Poderes, em Brasília.

Há 4 anos, em um evento na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, comemorativo dos seus 90 anos, falou o poeta Thiago de Mello:

“Como quem reparte pão, como quem reparte estrelas, como quem reparte flores, eu reparto meu canto de amor. Com uma estrofe apenas, eu me despeço – para permanecer com vocês. Me despeço para permanecer”. 

Estatutos do Homem
(Ato Institucional Permanente)
Thiago de Mello

Artigo I 
Fica decretado que agora vale a verdade. 
agora vale a vida, 
e de mãos dadas, 
marcharemos todos pela vida verdadeira. 
 
Artigo II 
Fica decretado que todos os dias da semana, 
inclusive as terças-feiras mais cinzentas, 
têm direito a converter-se em manhãs de domingo. 

Artigo III  
Fica decretado que, a partir deste instante, 
haverá girassóis em todas as janelas, 
que os girassóis terão direito 
a abrir-se dentro da sombra; 
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, 
abertas para o verde onde cresce a esperança. 

Artigo IV   
Fica decretado que o homem 
não precisará nunca mais 
duvidar do homem. 
Que o homem confiará no homem 
como a palmeira confia no vento, 
como o vento confia no ar, 
como o ar confia no campo azul do céu. 

        Parágrafo único:  
        O homem, confiará no homem 
        como um menino confia em outro menino. 

Artigo V  
Fica decretado que os homens 
estão livres do jugo da mentira. 
Nunca mais será preciso usar 
a couraça do silêncio 
nem a armadura de palavras. 
O homem se sentará à mesa 
com seu olhar limpo 
porque a verdade passará a ser servida 
antes da sobremesa. 

Artigo VI  
Fica estabelecida, durante dez séculos, 
a prática sonhada pelo profeta Isaías, 
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos 
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora. 

Artigo VII  
Por decreto irrevogável fica estabelecido  
o reinado permanente da justiça e da claridade,  
e a alegria será uma bandeira generosa  
para sempre desfraldada na alma do povo. 

Artigo VIII   
Fica decretado que a maior dor 
sempre foi e será sempre 
não poder dar-se amor a quem se ama 
e saber que é a água 
que dá à planta o milagre da flor. 

Artigo IX   
Fica permitido que o pão de cada dia 
tenha no homem o sinal de seu suor.   
Mas que sobretudo tenha  
sempre o quente sabor da ternura. 

Artigo X  
Fica permitido a qualquer  pessoa, 
qualquer hora da vida, 
uso do traje branco. 

Artigo XI   
Fica decretado, por definição, 
que o homem é um animal que ama  
e que por isso é belo, 
muito mais belo que a estrela da manhã. 

Artigo XII   
Decreta-se que nada será obrigado  
nem proibido, 
tudo será permitido,  
inclusive brincar com os rinocerontes  
e caminhar pelas tardes  
com uma imensa begônia na lapela. 

        Parágrafo único:  
        Só uma coisa fica proibida: 
        amar sem amor. 

Artigo XIII   
Fica decretado que o dinheiro 
não poderá nunca mais comprar 
o sol das manhãs vindouras. 
Expulso do grande baú do medo, 
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal 
para defender o direito de cantar 
e a festa do dia que chegou. 

Artigo Final.   
Fica proibido o uso da palavra liberdade,  
a qual será suprimida dos dicionários  
e do pântano enganoso das bocas. 
A partir deste instante 
a liberdade será algo vivo e transparente 
como um fogo ou um rio, 
e a sua morada será sempre  
o coração do homem.

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